Medellín: Ata de Nascimento da Igreja Latino-Americana. 50 Anos Depois.
Por Edward Guimarães
23 de agosto de 2018 por Leoni Alves
Garcia
Só podemos compreender bem a figura do papa
Francisco tendo presente o significado da Segunda Conferência Geral do Episcopado
Latino-Americano, celebrada na cidade de Medellín, na Colômbia, de 24 de agosto
a 6 de setembro de 1968.
Para o
teólogo José Comblin, a Conferência de Medellín pode ser considerada a ata de
nascimento da Igreja latino-americana, com seu rosto próprio, sua identidade,
suas opções pastorais, suas comunidades de base, a leitura popular da Bíblia, a
Teologia da Libertação, sua luta pela justiça e seus mártires.
O
Observatório da Evangelização publicou esta síntese elaborada pelo prof. Edward
Guimarães do livro 50 anos de Medellín. Revisitando textos, retomando o
caminho organizado por Manoel Godoy e Francisco Aquino Junior,
publicado por Edições Paulinas em 2017.
Segue a publicação:
Depoimentos
e balanços significativos atestam que a consciência da relevância eclesial,
social e política da Conferência de Medellín continua viva e crescente ao longo
das últimas cinco décadas.
I – Medellín no calor da hora
Dom
Helder deixou-nos um vívido relato daqueles dias, escritos no calor da hora, no
qual, além de compartilhar, com inquietação, as controvérsias e incertezas que
pairavam sobre os rumos da Conferência, traça seu balanço pessoal da
Conferência. Captou imediatamente o sentido excepcional daquele evento: as
Conclusões de Medellín terão para a América Latina sentido comparável ao dos
documentos do Vaticano II para o mundo inteiro. Nas palavras de Dom Helder, por
um lado, haviam ameaças:
O Santo
Padre, em sua vinda a Bogotá (para o Congresso Eucarístico Internacional e a
abertura oficial da 2ª Conferência), nas suas 20 e tantas alocuções, mais freou
do que abriu… O documento de trabalho, preparado com extremo cuidado (houve um
documento preliminar elaborado por técnicos de grande valor; este documento,
enviado às Conferências Episcopais ligadas ao Celam, de todas recebeu pareceres
e observações; uma Comissão de 80 Bispos e Peritos pôde, então, transformar o
documento preliminar em Documento de Trabalho), estava sendo atacado, de
público, por Episcopados inteiros: da Argentina, da Colômbia, da Venezuela… Dos
três legados do Papa, os dois Cardeais eram sabidamente conservadores e
extremamente prudentes; o Cardeal Samoré fez-se cercar de vários colaboradores,
Bispos e Sacerdotes, que levavam às Varias Comissões sua palavra de…
recomendação e advertência; Os primeiro avisos, as primeiras medidas deixavam
entrever completo controle das Conferência pela CAL (Pontifícia Comissão para a
América Latina).
Mas, por outro, para Dom Helder,
havia elementos que favoreciam:
1. Avelar, no Discurso de abertura,
apoiado pelos técnicos, teve a inspiração salvadora de dar uma interpretação
inteiramente positiva das Alocuções do Papa (o que foi coragem: a seu lado, o
cardeal Samoré não escondia a desaprovação e o descontentamento). Sem este
Discurso, as Alocuções do Papa pesariam, negativamente, durante toda a
Conferência; houve, é claro, distribuição estratégica de Bispos e Peritos pelos
vários Grupos de Trabalho. O método de trabalho adotado pelo Celam foi perfeito
e montado a nosso favor: duas palestras, de gente nossa, criando clima, mentalizando;
sete palestras, praticamente todas de gente nossa (menos uma) comentando o
documento de trabalho… Vieram as observações (os modos): foram examinados por
Bispos e Peritos. Vieram as votações prévias, as votações definitivas.
Repetiu-se o milagre do Concílio: temos grandes textos, que servirão de
esplêndido ponto de apoio para tudo o que há de urgente e importante a
empreender na América Latina. Tornou-se impossível, honestamente, chamar-me de
subversivo e comunista, sem, ao mesmo tempo, taxar de subversivo e comunismo
toda a Hierarquia Latino-americana… Entre os fatores positivos, guardei
o maior, o Espírito Santo era quase tangível; os Anjos eram quase
visíveis! Apelara tanto para a Rainha dos Anjos! Te Deum! Magnificat!
Para o
teólogo José Comblin, a Conferência de Medellín pode ser considerada a ata de
nascimento da Igreja latino-americana, com seu rosto próprio, sua identidade,
suas opções pastorais, suas comunidades de base, a leitura popular da Bíblia, a
Teologia da Libertação, sua luta pela justiça e seus mártires.
II – Balanço da recepção nas duas
décadas seguintes
§
A Semana
de Estudos CELAM realizada de 23-28 de fevereiro de 1976 produziu um
substancioso estudo da recepção de Medellín, publicado num volume de mais de
500 páginas (CELAM, Medellín. Reflexiones en el CELAM. MADRID,
1977).
§
Aos dez
anos de Medellín, em 1977, a Comissão de Estudos de História da Igreja na
América Latina (CEHILA) fez um simpósio sobre a sua recepção na Igreja da
América Latina, em Melgar, Colômbia (RICHARD, Pablo (org.) La
Iglesia latino-americana de Medellín a Puebla. Bogotá: CODECAL/CEHILA, 1979).
§
Enrique
Dussel, presidente da CEHILA, publicou um alentado volume sobre a primeira
década após Medellín (DUSSEL, Enrique. De Medellín a Puebla, uma
década de sangue e esperança. São Paulo: Loyola, 1983).
§
No marco
dos vintes anos de Medellín, há um balanço feito pelo CEHILA sobre a herança de
Medellín, publicado em número especial da Revista Eclesiástica Brasileira sob o
título “Medellín, vente anos depois” (REB 48, 1988-4).
A
preparação para a III Conferência do Episcopado Latino-americano, convocada
para acontecer em Puebla, México, aos dez anos de Medellín, desatou um profundo
processo de debate, rejeição e recepção de Medellín. Travou-se uma verdadeira
batalha eclesial no sentido de manter viva a herança de Medellín e de suas
intuições mais decisivas… Perfilavam-se os propósitos do novo Pontificado de
João Paulo II (1979-2005), que apontavam para o que João Batista Libanio chamou
de “a volta à grande disciplina” e a tentativa de enquadramento da Igreja
Latino-americana (LIBANIO, João Batista. A volta à grande disciplina.
São Paulo: Loyola, 1984)… Se Medellín significou o batismo da Igreja da
América Latina, Puebla pode ser considerada a celebração da sua confirmação.
A minoria
do Concílio acabou impondo-se no centro romano. Difundiu-se, a partir daí, como
única legítima a interpretação que encontrou acabada, formulação às vésperas do
Sínodo Extraordinário de 1985, aos vinte anos da clausura do Vaticano II, no
livro de entrevistas do Cardeal Joseph Ratzinger ao jornalista Vittorio
Messori, Rapporto sulla Fede (MESSORI, Vittorio. A
fé em crise: O cardeal Ratzinger se interroga. São Paulo: EPU, 1985;
BEOZZO, José Oscar (org.) Vaticano II e a Igreja Latino-americana.
São Paulo: Paulinas, 1985).
III – Nos 30 anos, uma enquete
entre seus protagonistas
Por
ocasião dos 30 anos de Medellín, num encontro realizado em Riobamba, no
Equador, em agosto de 1998, e destinado a comemorar a vida e obra de Mons.
Leonidas Proaño (1910-1988), foi feita uma pesquisa entre os cerca de setenta
bispos e teológos participantes sobre o significado de Medellín e os elementos
fortes que promoveu para a vida da Igreja da América Latina. Dentre o conteúdo
recolhido, merece destaque:
§
Medellín foi o momento em que adquiri ou vivi o que significa “eu creio
na Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana”… foi algo mais que uma tradução
do Concílio para nosso continente: foi a emergência de uma Igreja
Latino-americana madura e iluminadora… Se viveu o testemunho dos evangélicos
que participaram não somente com respeito, mas com uma experiência de comunhão,
de modo que pediram, com argumentos, poder receber a eucaristia na celebração
de encerramento… Mas seus elementos mais fortes foram o pronunciamento sobre a
opção pelos pobres, a claridade sobre o significado da violência e o
pronunciamento sobre a justiça. (Samuel Ruiz, bispo de San Cristóbal
de las Casas, em Chiapas, no México).
§
Medellín confirmou algumas opções que já tínhamos feito como membro da
Igreja chilena: assumir a responsabilidade social e política da Igreja, dar
apoio e participar da luta pela reforma agrária, fazer a opção pelas
Comunidades Eclesiais de Base, promover a inserção da vida religiosa no meio
dos pobres, adotar um estilo de vida próximo e simples pelos bispos, não
condenar aberta e previamente a Unidade Popular (Frente esquerda de partidos
políticos que elegeram o presidente Salvador Allende em 1970, governo que foi
derrubado pelo golpe militar de Pinochet em 1973)… Medellín nos fez tomar consciência
da realidade do continente, abrindo-nos as portas para uma análise mais
profunda e estruturada da realidade de dependência dos países do terceiro
mundo, das formas de violência e para a necessidade de uma educação
libertadora. ( Sérgio
Torres, colaborador de Mons. Manuel Larrain, bispo de Talca, no Chile,
exilado por muitos anos pela ditadura militar de Pinochet, padre de periferia
na capital Santiago, professor de teologia e um dos fundadores da Associação
Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo – ASETT/ EATWOT).
§
Medellín foi a oportunidade, para o episcopado e suas Igrejas, de
repensar o Vaticano II dentro do contexto continental, situar melhor a análise,
a reflexão teológica e as propostas pastorais… Medellín foi uma tentativa de
olhar a Igreja desde o seu lugar social, dos meios populares (indígenas,
afro-americanos, camponeses, empobrecidos) e convocar os cristãos para uma ação
pastoral transformadora. Foi um esforço de latino-americanizar o Concílio
Vaticano II, uma busca de um rosto de Igreja mais encarnada e de um pluralismo
eclesial em gestação. Suscitou, pelo Espírito Santo, profecia e criatividade,
dando um passo oficial para uma evangelização incultura, que não prioriza a
reprodução da cristandade, mas abre para uma Igreja Popular. Suscitou as CEBs e
ensaiou uma nova pedagogia eclesial própria de pequenas Igrejas vivas na Base,
com leitura popular da Bíblia e liturgia criativa, participativa e inculturada
na realidade do povo. (Dom
Antônio Fragoso, bispo de Crateús, no Ceará, entre 1964-1998).
§
Medellín teve uma influência de irrupção do Espírito de Deus, com muita
clareza sobre a oportunidade para nosso continente das perspectivas do Vaticano
II, sobretudo no que toca o mundo os pobres. Medellín foi uma esperança
indestrutível de futuro da Igreja a serviço deste continente. Significou também
o reconhecimento da América Latina como um lugar de anúncio do Evangelho para o
mundo, a partir do potencial evangélico dos índios, dos negros e dos
camponeses. Dentre seus elementos mais fortes merece destaque a forma da opção
pelos pobres, a força da evangelização que tomou lugar prioritário com relação
aos sacramentos ou à sacramentalização, a Palavra de Deus retomou seu lugar
primitivo influenciando a liturgia e a vida da comunidade, a conscientização do
povo oprimido na linha da própria libertação. (Dom Tomás Balduíno (1922-2014),
bispo de Goiás, entre 1967-1988), um dos fundadores do Conselho Indigenista
Missionário – CIMI e da Comissão Pastoral da Terra – CPT).
IV – Aos 40 anos, a V Conferência
de Aparecida. Sínodo ou conferência, evento episcopal ou eclesial?
Depois de
Santo Domingo aconteceu o Sínodo da América, em 1997, que interrompeu a série
das Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano. Quando o CELAM
solicitou uma nova Conferência para o início do novo milênio que permitisse a
Igreja da América Latina e do Caribe refletir sobre as novas circunstâncias e
propor o rumo de sua caminhada, a resposta do Cardeal Angelo Sodano, secretário
de Estado foi dura e direta: um Sínodo, sim; uma Conferência, não. Sínodo em
Roma, sim; na América Latina, não, devido à saúde do Papa, que gostaria de
participar.
O CELAM
levou a questão diretamente ao papa João Paulo II, reafirmando o desejo de se
realizar uma V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. O
Papa solicitou uma consulta aos cardeais latino-americanos e as Conferências
episcopais do continente. Resultado: 18 dos 30 cardeais e 21 das 22
Conferências episcopais manifestaram a opção pela Conferência e não pelo
Sínodo. O Papa determinou, então, que se seguisse a tradição da Igreja
latino-americana.
Esta
tradição inaugurada com Medellín, que não tem outra similar na África, Ásia e
Europa, forjou um modelo de exercício da colegialidade de caráter deliberativo,
mais próximo de um Concílio Ecumênico do que de um Sínodo apenas consultivo.
Manter
esta tradição é crucial para a América Latina, mas também para a Igreja
universal, no sentido de que floresçam, em comunhão com a Sé romana, as igrejas
locais, com sua pastoral, sua teologia, seu magistério e instrumentos próprios,
cada vez mais enraizados e inculturados na realidade de cada região e do
continente.
Com todos
os atrasos e com a morte de João Paulo II, a V Conferência prevista para Quito,
no Equador, e depois para Buenos Aires, na Argentina, veio, por decisão do novo
papa, Bento XVI, para Aparecida, no Brasil.
A
realização num santuário mariano de grande afluxo popular provocou alterações
significativas: as celebrações durante o evento foram na grande Basílica e
abertas ao povo. Essa nova situação provoca a reflexão sobre o caráter
teológico de uma Conferência Episcopal: ser um evento não apenas episcopal, mas
profundamente eclesial, ou seja, que a dinâmica de sua preparação, de seu
desenrolar e de sua recepção interessam e envolvem a participação de todo o
povo de Deus, e não apenas do corpo episcopal.
V – Povo
de Deus, colegialidade, conciliaridade, ecumenicidade e Reino de Deus
A forma
de compor a Assembleia de Aparecida explicita cinco verdades eclesiais de
grande importância:
1. Que o bispo é sempre bispo de uma
porção do povo de Deus, de uma Igreja particular à qual está unido,
em comunhão com os demais bispos e com o bispo de Roma, com os quais
compartilha a solicitude de todas as Igrejas;
2. Que em uma Conferência pode
acontecer a forma rica e mais completa de colegialidade episcopal,
a deliberativa, e não apenas a consultiva, como nos sínodos;
3. Que em uma Conferência, pode
brilhar de forma eminente a catolicidade e a conciliaridade da
Igreja, guiada pelo Espírito Santo. Desde a Conferência do Rio de Janeiro, os
presidentes das Conferências Episcopais de outros países são convidados a
participar, bem como das Conferências Continentais. Em Aparecida, por exemplo,
participaram os presidentes das Conferências Episcopais do Canadá, Estados Unidos,
Espanha, Filipinas, Portugal e das Conferências Continentais da África, Ásia e
Europa. Desde a II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, a de
Medellín, o Papa faz a abertura solene e confirma o evento com o selo do
ministério de Pedro. O papa Paulo VI fez a abertura de Medellín; João Paulo II
fez a de Puebla e a de Santo Domingo, e Bento XVI fez a de Aparecida. O local e
o universal se dão as mãos num momento eclesial tão importante.
4. Há apenas uma única Igreja de
Cristo que subsiste, como diz o Vaticano II, na Igreja Católica, mas que está
também nas outras igrejas da unidade. O ecumenismo é nota essencial da Igreja
de Jesus Cristo e a busca da unidade, um mandamento solene do Senhor.
Assembleias, Conferências, Sínodos e Concílios de uma Igreja cristã interessam
de perto às demais igrejas cristãs, todas elas partes do mesmo e único corpo de
Cristo. Por isso são sempre convidados observadores fraternos das outras
igrejas cristãs.
5. A Igreja não existe para si, mas
para os outros e para a salvação e libertação do mundo, pois está destinada, em
sua missão, a seguir os passos de Jesus, no anúncio e implantação do Reino
de Deus. Anunciar e instaurar o Reino de Deus, reino de justiça e de paz,
de fraternidade e de solidariedade foi o propósito de Jesus e deve ser o de sua
Igreja, continuadora de sua obra.
Prof. Edward Guimarães –
Secretário Executivo do Observatório da Evangelização.
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