LITÚRGIA DOMÉSTICA. PADRE DANILO LIMA

LITURGIA DOMÉSTICA: Redescobrindo as Liturgias Domésticas – Padre Danilo Lima, Secretariado Arquidiocesano de Liturgia de Belo Horizonte


O nosso tema nasce a partir da situação em que vivemos: vamos fazer aqui hoje uma pequena teologia contextual. Todos estamos experimentando esse tempo difícil de pandemia, de medo de contaminação pelo Vírus Corona, a maioria de nós em isolamento (graças a Deus!). Porém, estamos muito apreensivos por aqueles que não vivem esse isolamento (profissionais da área de saúde e profissionais dos serviços essenciais), mas também e, infelizmente, por aqueles que ainda não se conscientizaram da gravidade do problema, ou estão sendo constrangidos a sair por necessidade ou pressão econômica ou social. Lembramos ainda, de modo especial, dos irmãos e irmãs em situação de rua. Eles são a porção mais vulnerável da nossa sociedade e precisam da nossa solidariedade. 
Estamos também em plena Semana Santa: a Grande Semana dos cristãos. E, nesse contexto eclesial, sendo chamados ao desafio de redescobrir nossa vocação de Povo Sacerdotal, a partir das celebrações domésticas, junto dos nossos familiares, guardando o rico tesouro da nossa fé que se realiza pela liturgia, pelo serviço e pelo testemunho. A fé não é uma ideia, nem uma sensação interna, ela é uma obra e se realiza quando celebramos, quando servimos aos irmãos e quando testemunhamos no mundo o evangelho do Reino. Hoje, vamos tratar da fé a partir da celebração. 
Nesse contexto estamos nos dando conta da importância capital da liturgia. Quando os cristãos de Abitene – Tunísia, no norte da África eram martirizados, uma afirmação sempre surgia de seus lábios: “sine dominico non possumus”, isto é, “não podemos viver sem o domingo”. E eles foram martirizados em razão de seu testemunho e da aguda consciência da importância da celebração dominical. Hoje somos nós que, confinados, dizemos: “Sem a liturgia, não podemos viver a nossa fé”. É a liturgia que nos tornou cristãos, é a liturgia que alimenta e robustece a nossa fé, é a liturgia que nos impulsiona para a missão, é a liturgia que nos abre os nossos olhos para a presença do Senhor em nossa caminhada e em nossas casas. Na Liturgia, Jesus mesmo nos revela as Escrituras e nos nutre a fé, a esperança e o amor. 
Temos então um desafio e uma oportunidade. Constrangidos a não celebrar nas nossas Igrejas, somos desafiados a celebrar nas nossas casas. Essa é, ao meu ver, uma grande oportunidade para redescobrirmos algumas coisas muito, mas muito importantes para o seguimento de Jesus, para a Igreja e para a própria liturgia. 
Gostaria de iniciar a nossa conversa, recordando o Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 13,51: 

“Todo escriba que se tornou discípulo do Reino dos Céus é semelhante ao proprietário que do seu tesouro tira coisas novas e velhas” 
De quais coisas novas e velhas estamos falando? Falamos hoje da liturgia doméstica que parece ser uma novidade, uma situação extraordinária, ou mesmo de suplência, mas na verdade é uma coisa muito antiga, mais antiga do que as liturgias das Igrejas cristãs de hoje. 
Tudo começou nas casas. O cristianismo começou como um movimento doméstico e começou pelas liturgias. 
Então podemos afirmar que algumas coisas nasceram juntas: 

Igreja – Liturgia, no ambiente das casas de família. 

Convido vocês, então a fazerem comigo um recuo. Quando o povo hebreu vivia como povo errante – nômade, porque não tinha terra, ele celebrava conforme o ritmo da natureza onde vivia. Nesse tempo havia os nômades chamados hapirus (os ancestrais dos hebreus), eles ofereciam a Deus as primícias dos rebanhos ou das coletas dos frutos que a terra dava. E ofereciam para Deus livrar esse povo dos males que os acompanhavam nesse caminho. É, provavelmente aí que temos os elementos mais origninais da festa da páscoa. 
Nesse contexto, os povos nômades praticavam de maneira muito forte a hospitalidade. Hospitalidade era uma regra de sobrevivência para os que assim viviam. O caso mais bonito que temos está relatado no livro do Gn 18, quando Abraão recebe a misteriosa visita de três mensageiros. Ele os convida para ficar com eles e oferece a eles de lhes lavar os pés, os alimentar com pão e de reconfortar o coração desses visitantes. Os visitantes então anunciam que Sara, a mulher de Abraão vai ter um filho. 
Dando um salto, vamos ao Egito, quando o povo de Deus oprimido e escravizado viu a realização da libertação por meio de Moisés e dos sinais que Deus realizou. O último dos sinais desencadeou a saída, mas antes de sair, Deus determinou que esse povo celebrasse nas casas a páscoa, comendo o cordeiro, os pães ázimos e as ervas amargas. Ali foi deixado a ordem de celebrar anualmente, essa festa em forma de ceia familiar, como memorial da libertação. 
Já na terra prometida, o povo judeu celebrava várias liturgias domésticas: a festa da páscoa, com ritos reservados ao pai de família, à mãe, aos filhos; eles tinham também várias bênçãos rezadas ao longo do dia e, pelo menos por duas vezes ao dia recitavam as primeiras palavras do Shemah Israel “Israel, escuta o Senhor, nosso Deus. O Senhor é um”. 
No livro de Daniel vemos o profeta rezar três vezes ao dia, em casa, voltando-se para Jerusalém. 
No livro de Tobias, vemos que após o casamento e antes de ir para o leito nupcial, Tobias e Sara elevam a Deus sua prece, suplicando a proteção contra a morte. 
Depois que o templo foi construído, não cessaram as liturgias domésticas e, após o exílio, com a advento das sinagogas, também não cessaram essas liturgias das casas. Os judeus continuavam a exercer a sua fé com bênçãos, orações, pequenos ritos no seu dia-a-dia. 
Jesus, como judeu piedoso, e seus discípulos viviam assim a sua experiência de fé: nas casas, nas sinagogas e no templo. 
Jesus era amante das casas. Os evangelhos nos fazem saber que ele gostava de participar de refeições: na casa de Lázaro, Marta e Maria; na casa de Pedro, onde cura a sua sogra; na casa de Simão, o fariseu, onde uma mulher invade o espaço dos homens e lava os pés de Jesus com suas lágrimas e beijos e os enxuga com seus cabelos – e Jesus critica a falta de hospitalidade de Simão; na casa de Zaqueu, onde Jesus declara que a salvação ali acontecia. Os evangelhos contam ainda que Jesus, ao contrário de João Batista que jejuava, era chamado de comilão e beberrão. 
Então, as casas eram lugar de muita coisa importante para Jesus e para os discípulos: 
Lugar da vida, da amizade, da comunhão; 
Lugar das mudanças: da conversão de Zaqueu; 
Lugar da entrega de si, da intimidade, do afeto, da emoção; 
Lugar da acolhida e da proximidade, da confiança, da segurança; 
Lugar da escura da Palavra; 
Lugar de encontro entre Jesus e seus discípulos; 
Lugar da ressurreição; 
Lugar do Espírito Santo; 
Esse lugar tão especial para Jesus, ficou ainda mais forte, quando ele reúne seus discípulos e discípulas para uma ceia, onde ele lava os pés, parte o pão e prepara o coração dos discípulos para a sua páscoa. 
Os discípulos seguirão pelo mesmo caminho: não param de ir ao templo nem às sinagogas, mas não param também de celebrar nas casas! 
Quando o templo foi destruído nos anos 70 do primeiro século, os cristãos são postos para fora das sinagogas. E o que salva a sua experiência de fé é a reunião doméstica, as celebrações nas casas, em comunidade ou em família. 
À destruição do templo de Jerusalém corresponde ao resgate, entre os cristãos, de uma noção muito clara de que os cristãos não celebram mais como no templo. Aquela experiência foi superada por Jesus na sua morte e ressurreição. O véu rasgou-se, o sagrado saiu do santo dos santos e repousou na cruz, fora dos muros, num torturado, entre dois ladrões! Cristo é o único sacerdote, o único altar, o único sacrifício e a única oferenda. Nós, participamos dessa nova forma de culto existencial e celebrativo, pelo sacramento do Batismo. Também os ministros ordenados participam do único sacerdócio de Cristo, mas não separados do Corpo, que é a comunidade. 
É importante, talvez, reler a carta aos hebreus e a primeira carta de Pedro, bem como Rm 12,1. 
Sabemos que Paulo se valia de muitas famílias e de suas casas para constituir comunidades: 
Em Roma, ele contava com Prisca e Áquila; 
Em Laodiceia, contava com uma mulher chamada Nifas; 
Em Colossos, contava com a casa de Filêmon, discípulo de Jesus; 
Vemos então que a Igreja nascente tem um berço: a casa. A casa é o lugar da comunidade, da eucaristia, do batismo… A casa é o lugar do encontro entre os irmãos, o lugar de iniciar na fé. 
Os atos dos apóstolos 2,46-47 dirão que os cristãos eram assíduos às celebrações, partindo o pão pelas casas, tomando o alimento com simplicidade de coração e louvando a Deus. 
Ser cristão é ser da casa, onde se reúnem aqueles que buscam o Senhor na celebração que inclui a leitura das Escrituras em um clima fraterno, num ambiente hospitaleiro e cheio, cheinho da presença de Deus. 
Temos alguns testemunhos arquitetônicos interessantes: o mais notável são essas casas que serviam de reunião da comunidade, chamadas de Domus Ecclesiae (Casa da Igreja ou Casa da Assembleia). A mais famosa Domus Ecclesiae fica em Dura Europos, uma cidade na Síria, onde vemos uma casa toda adaptada para a vida da comunidade: sala do batismo, sala da catequese, sala da eucaristia, pátio de acolhida… Muitas dessas edificações foram encontradas também em Roma, e em outras cidades próximas. 
Isso vai mudar: quando o cristianismo deixa de ser religião perseguida para ser uma religião do estado, em 313. Ali iniciamos um longo processo de clericalização dos ministérios da Igreja. Embora esse seja um outro assunto, e eu esteja simplificando bastante, é importante fazer notar que a liturgia das casas vai ganhar expressões muito formais, da corte, perdendo esse caráter doméstico e se constituído como celebrações muito elaboradas e distantes. 
O que temos hoje? Liturgias com elementos muito clericais que escondem uma riqueza muito mais antiga: a liturgia das casas. 
Pensemos no sacramento fonte, o Batismo: um banho! 
Pensemos no sacramento central, a eucaristia: uma refeição! 
Pensemos na Oração dos cristãos: uma relação filial, de irmãos com o Pai! 
Pensemos na unção dos enfermos: uma unção medicinal do grande médico, Jesus! 
Pensemos no matrimônio: a constituição de um lar, de uma outra igreja doméstica! 
Pensemos na penitência: a volta ao perdão dado pelo batismo e experimentado nas relações fraternas! 
Pensemos na Confirmação: a unção para manifestar a presença e a atuação de Jesus no mundo! 
Pensemos no ministério ordenado: o simbolismo do Povo sacerdotal, sob a forma de concentração ministerial, capaz de elevar a Deus a adoração perfeita em Jesus! 
Pensemos na oração diária: um ofício de prolongar a prece, o louvor e a intercessão de Jesus pelo mundo! 
Pensemos nas bênçãos, tão voltadas para as casas, as crianças, os casais grávidos, os animais, a mesa da refeição, os doentes! 
Pensemos nas celebrações da Palavra, verdadeiras liturgias da Igreja, onde o próprio Cristo, Palavra de Deus se revela nas leituras e na partilha das Escrituras. 

Diante disso tudo, somos convidados a superar e a promover. Vamos superar o quê? Vamos promover o quê? 
Superar a tentação de ficar parados, esperando passar essa tormenta, pensando que não podemos fazer nada… 
Superar a tentação consumista: alguém faz a celebração para mim! Neste sentido, convém reconhecer o valor das transmissões de celebrações. Que bom que elas acontecem. Elas têm imenso valor pedagógico e consolador para muitas pessoas e famílias. Contudo, elas não substituem as celebrações da casa, nem da comunidade. Que pena que muitos estão deixando de celebrar em casa para assistir missas na TV. 
Superar a mentalidade clericalista que o nosso Papa Francisco tanto condena. Somos povo sacerdotal e podemos celebrar em nossas casas muitas das liturgias da nossa Igreja. 
Superar a atitude de oposição: as liturgias domésticas não se opõem às liturgias das Igrejas, mas as enriquece e ambas caminham juntas. 
Superar a oposição entre liturgia e piedade popular. 

O que precisamos promover? 
Celebrações domésticas: são muitos os subsídios! 
Ler juntos a Bíblia, em um clima orante, celebrativo, acendendo velas, incenso, cantando salmos, preparando um altar… 
Deixar rolar os afetos, as relações: tanto a liturgia quanto as casas vivem de relações. 
Aproveitar para rezar o Ofício Divino das Comunidades, riqueza do Brasil – estamos um passo à frente! Fazer do Ofício nossa ação de graças diária, no ritmo da natureza, fazendo memória, pela oração dos salmos, da morte e ressurreição de Jesus. 
Retomar a benção da mesa, louvando a Deus pelo alimento e pedindo a benção para as refeições e para as famílias; 
Deixar que as liturgias das casas realizem, na nossa peregrinação: o sustento pela partilha do alimento servido no almoço e no jantar; o serviço de qualquer tipo, que chamamos de lava-pés; o conforto do coração pela sabedoria que reside nas relações moldadas pela Palavra de Deus; 
Promover, depois dessa pandemia, liturgias mais domésticas em nossas Igrejas: mais acolhedoras, mais hospitaleiras, mais quentinhas! 
Nesse momento, em forma de provocação, eu pergunto: o que quer dizer, hoje, no nosso contexto, a palavra do Papa quando nos chama para uma Igreja em saída? Para mim, significa, voltar para as casas, para todas as casas, para as nossas Galileias, onde Jesus ressuscitado vai à nossa frente e nos espera! 

Apresentação: 
Pe Danilo César, da Arquidiocese de Belo Horizonte; 
Liturgista, formado em Roma, hoje doutorando pela FAJE/CAPES; 
Membro do Secretariado Arquidiocesano de Liturgia; 
Membro da Rede Celebra; 
Professor de Liturgia: PUC-MG / ISTA / Pós-graduação do Curso de Liturgia cristã da Rede Celebra/FAJE, Centro de Liturgia – UNISAL; 
Pároco da Paróquia de Santana, no bairro Serra em Belo Horizonte.

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