A embalagem da batata frita na praia e a mudança do Mundo

 

Para a semana do Meio Ambiente: 

A embalagem da batata frita na praia e a mudança do Mundo[1]                                                            




Era um dia de primavera na Grécia, quando minha esposa, eu e um casal amigo planejamos uma caminhada para uma praia isolada que normalmente só é acessível de barco. A ideia virou logo mais uma aventura, pois constatamos que era muito complicado encontrar a vereda. Tivemos que enfrentar caminhos fechados pelo mato e cobertos de teias de aranha.

Enfim, encontramos a vereda certa e descemos esperançosos através dos penhascos íngremes até a baía. Lá de baixo nos atraia o paraíso: uma borda branca feita de areia aquecida pelo sol que se aninhou em forma de meia-lua em torno de um mar agitado. Nenhuma alma por perto ou por longe! Apenas o chilrear dos grilos e o barulho dos barcos no mar. Demorou mais meia hora até que pisamos no “paraíso”, as pernas trémulas pelo esforço. Debaixo de uma rocha encontramos um lindo lugarejo para ficar. Queríamos tirar as mochilas das costas e pular nas ondas, quando descobrimos os restos nojentos de um ou mais visitantes que tinham passado aqui: garrafas, latas, restos de comida, embalagens de batata frita semicheias, camisinha usada...enfim, aqui se encontrou tudo o que faz o mundo ser mais bonito. Os responsáveis deste legado provavelmente já estavam chegando na próxima baía. Embora nosso grupo tenha feito para as férias o firme propósito de se abster de “qualquer crítica cultural”, nesta hora não nos seguramos: “Isso”, disse um de nós, “é o exato efeito de uma sociedade sem Deus: a irresponsabilidade”.          

Nós concordamos: Essa gente navegando lá no mar deve ter pensado: Nunca mais voltaremos a essa praia. O lixo que vamos deixar para trás, nunca mais veremos. O resto que fica fora aos nossos olhos não nos interessa. A praia está tão isolada que ninguém nos pega. Ninguém vai descobrir nossa negligência. O mar vem e leva tudo. A prefeitura vai limpar. O mato vai tomar conta. 

 

No centro do mundo: meu EU

Qualquer pessoa com juízo sabe: isso é apenas um paradigma pelo trato do mundo como um todo. Vivemos como se houvesse somente nosso ponto de vista. Sem dúvida, queremos dinheiro, ordem, segurança, tranquilidade, paz – mas só para nós. O outro país próximo, a outra geração, os outros visitantes da praia estão fora do nosso olhar.

Importa que no centro do mundo – que sou “EU“ – esteja tudo bem. Porém, isso não funciona. Aquela turma com o barco vai chegar numa outra praia maravilhosa onde tem que fugir dos restos fedorentos de gente como eles. Em breve, não haverá mais praias paradisíacas, pois o ser humano já pisou em todas. Temos duas opções: ou nós tratamos a criação nas coisas mínimas como se tivéssemos que voltar ao aquilo que deixamos para trás – dito com outras palavras: como alguém estivesse nos “olhando” todo momento –, ou perecemos num mundo em que qualquer um pode fugir deixando sua sujeira e seus débitos para trás, e de fato o faz até que, enfim, uma força o impede faze-lo.

 

Como assumir responsabilidade?

 

O problema será: Como vamos assumir responsabilidade? Sobre isso, tenho minha teoria própria que diz o seguinte: Nós vamos somente voltar a um trato responsável com o mundo e conosco quando tivermos aprendido a orar. Orar significa responder a Deus – não apenas com palavras, mas com a existência toda – através do nosso “ser-responsável”. A vida toda, cada instante, cada cena, cada pedaço de terra onde pisamos, cada pessoa humana que encontramos é um chamado de Deus. Em tudo isso, Deus fala conosco. Responder a Ele significa orar. Quando descemos àquela praia isolada, queria responder a Deus com uma oração jubilosa de agradecimento. Mas, se tornou uma lamentação e uma reflexão diante de Deus sobre a pergunta: “Onde eu mesmo estou agindo irresponsavelmente?” Ser responsável significa orar – e orar significa: mergulhar sempre mais na responsabilidade pelo tudo.

Claro, isso é um desafio gigantesco. Não posso me responsabilizar por tudo! Isso, ninguém exige! Deus é responsável pelo tudo. O que Ele exige de nós são passos corajosos rumo a Sua integridade. Faz parte da nossa divinização de trabalhar à sombra de Deus pelo tudo, a pensar pelo tudo e a quere-lo com todas as forças do coração e da mente.

Este é o único sentido da prece do Pai-nosso “venha Teu Reino”. Tanto faz se essa prece vem a nós diante do lixo civilizatório numa praia na Grécia ou diante de uma política de endividamento sem vergonha das nações industrializadas do Ocidente. Mas, essa prece é atual como nunca antes. Se o Reino de Deus não vier, cada pessoa manobra suas coisas à custo do resto da humanidade. Só que a lógica dos irresponsáveis não funciona. As próximas pessoas pagam a conta: o próximo visitante da praia, a próxima geração dos nossos filhos quando se trata das dívidas que nossa geração põe nos ombros deles.   

 

Deus se interessa pelos meus atos

Estou convicto que uma rachadura passa pelo mundo. Tem pessoas responsáveis – e tem pessoas não-responsáveis. Não quero afirmar que pessoas não-religiosas não poderiam ser também responsáveis, mas entre os responsáveis cada vez mais pessoas descobrem que são afinal motivos religiosos que as levam a agir com responsabilidade em cada situação, também nas mínimas. O Imperativo categórico de Immanuel Kant que diz "Aja como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal", não é mais suficiente. Ele se baseia num conjuntivo (“devesse”), num pressuposto pragmático da razão.

A fé supera o conjuntivo. Ali, Deus pergunta por todos os meus atos, principalmente pelas minhas omissões. Tudo acontece à luz de Deus. Quando a pessoa de fé for ao mesmo tempo uma pessoa orante, então está continuamente em conversação com Aquele, que conhece todos os caminhos (Jr 32,19), que contou todos cabelos na nossa cabeça (Mt 10,30), que nos guarda como a pupila de Seus olhos (Sl 17,8).

Há uma pequena meditação de Charles de Foucauld (1858-1916), o „pequeno Irmão de Jesus” e amigo dos beduínos no Saara. Essa meditação mostra a mudança de perspectiva da pessoa orante referente a sua responsabilidade e revela todo o potencial que consiste na assunção de uma responsabilidade orante e atuante:

 

Quando tu andas devagar, os outros ficam parados.

Quando tu te sentas, eles adormecem.

Quando tu duvidas, eles se desesperam.

Mas, quando tu acordas, eles abram os olhos.

Quando tu és vanguarda, eles te ultrapassam.

Quando tu dás a mão, eles dão sua vida.

Quando tu oras, eles se tornam santos. 

 

Oração como responsabilidade global

Orar é responsabilidade global que começa com a gente; podemos até dizer: orar é responsabilidade global através da responsabilidade pessoal. Deus nunca fala conosco de forma anônima. Ele nos chama pelo nosso nome. Temos sempre audiência particular. Ele nos ouve com uma exclusividade como que se não tivesse nenhum outro interlocutor no universo todo. Ele fala através da minha experiência imediata. Tudo se torna um chamado de Deus para mim. Pode até ser que seu chamado esteja escondido atrás de algum lixo na praia.

Um turista postou no homepage dele essa mensagem; talvez se trate de uma oração:     

 

Encontro matutino na praia...Finalmente, desta vez me lembrei a levar uma sacola para coletar alguns dos restos da civilização espalhados na areia ou trazidos pelas ondas. Não é nada dramático o que ficou preso entre as pedras e rochas, mas o plástico e o isopor atrapalham a imagem intacta, ao menos atrapalham a mim.      

A palavra responsabilidade que falamos facilmente como a boca para fora, tem a ver com resposta. Uma pessoa orante encontra-se em modo de resposta. Também nas férias. Tomara que o pedaço de isopor que peguei na praia não esteja descartado por causa do meu pedantismo, mas à gratidão secreta e jubilosa da minha alma pela beleza da criação de Deus.

 

A força da oração

Somente no decorrer dos anos a gente percebe a própria mudança pela oração ou como as pessoas se desenvolvem por que estão rezando; como estão sendo libertadas de girar em torno do próprio Eu, como seu plano de vida adquire um direcionamento, como seu coração se estabelece na alegria. Uma mulher mística da Idade Média, Mechthild de Magdeburg, descreveu, em 1250, na sua obra mais importante “A luz fluente da Divindade” o poder da oração. Cada pessoa, que ao longo de um determinado tempo tentou a sua própria mudança através da oração, vai concordar com cada formulação:   

 

A oração tem grande poder,

que a pessoa executa com sua força.

Ela torna um coração amargo doce,

um coração triste torna alegre,

um coração insensato torna prudente,

um coração tímido torna ousado,

um coração fraco torna forte,

um coração cego abre os olhos,

uma alma fria torna ardente.

A oração atrai o grande Deus num coração pequeno,

e eleva a alma faminta ao Deus da plenitude. 

 

Por um lado, orar é ‘estreito’, por que começa somente comigo; por outro lado, orar é ‘largo’ nos seus efeitos. Orar penetra no coração do universo, por que toca a Deus. Orar é a ligação mais próxima para pessoas distantes. Orar tem força ali, onde as minhas outras ligações não alcançam, onde não chega nenhum braço humano. Não podemos salvar o mundo, menos ainda com nossos atos. Mas podemos orar universalmente. Temos uma força que é tão grande como nosso coração quando ama: a oração.    

 

Madre Teresa de Calcutá lembra disso ao dizer:

Pela via espiritual alcançamos através da nossa oração toda criação de Deus, desde os planetas mais distantes até as profundezas dos mares, uma isolada capela num convento como uma Igreja abandonada, uma clínica onde se pratica o aborto e a cela numa penitenciária..., sim, o céu e as portas do inferno. Com toda parte da criação estamos ligados. Com cada criatura e por cada criatura oramos para que todos sejam salvos e santificados pelos quais o sangue do Filho de Deus foi derramado.   

Assim, no horizonte de Deus podemos ver muita coisa e muito podemos entregar a Ele para que cure, benfazeja e salve realizando milagres pequenos e grandes. No entanto, não podemos ver tudo – nem o sofrimento mudo e enterrado num coração humano, nem as muitas tragédias na escuridão que exigem que alguém veja e se importe. Tanta coisa não é vista, tanta coisa é feia.

 

Mas, Deus está vendo

Durante muito tempo tive que pensar sobre o fenômeno de um mundo cada vez mais feio. Voltemos a olhar o mar: os litorais da Europa são todos iguais, desfigurados pela comercialização de tudo o que é belo. Lá onde as pessoas ainda cultivam um sonho de natureza, logo mais avança o câncer dos lanchonetes de fast food, hotéis baratos, templos de supermercados e pula-pula, nos quais trabalhadores de mão barata têm que se prostituir com algum lixo produzido em massa para ganharem a vida miseravelmente. As multinacionais que lucram com isso, já projetaram o próximo “paraíso” no seu scanner para devasta-lo com a mesma estratégia e transforma-lo em dinheiro. Um pedaço do mundo somente é visto para sacá-lo, como se diz no linguajar comercial. O mundo se torna feio e nele as pessoas como Nietzsche previu profeticamente – pessoas sem amor, sem saudade, sem estrela. A gente não tem vontade de olhar. Será que ninguém olha?  

 

Sim – Deus está olhando. Eu sentia antigamente problemas com este „olho-de-Deus“ que tudo vê. Pensava que seria melhor, Ele não olhar tudo. Agora penso diferente. Onde ninguém olha, o mundo se acaba, as pessoas se acabam. Temos que olhar, não podemos fechar os olhos, temos que orar por tudo o que afeta nossa alma. E lá onde não podemos mais olhar, por ultrapassar nossas forças, lá é uma benção que Deus olha nossos sofrimentos e feiuras, a devastação do mundo e dos corações.

“Deus viu seu povo” (Ex 2,25), diz a história de Moises que fala da situação oprimida do povo de Israel. Quer dizer: Deus olhou. Ou com outras palavras: Deus nos deu seu olhar (e com ele nos deu dignidade)[2]. “Ser visto“ por alguém significa “ter dignidade”. Dignidade não temos por nós mesmos. Pessoas sem contatos sociais – por exemplo, pessoas presas no isolamento carcerário – degeneram, atrofiam. Somente recebemos dignidade, quando alguém olha de verdade para nós. O olhar amoroso do outro nos faz crescer, ser belo, grande e forte.    

Cada pessoa busca „ser vista“, isto é, ter dignidade. Algumas pessoas jogam sua vida fora, quando não são mais vistas; portanto, a dignidade tem a ver com “ser-visto”. As crianças inventam tanta coisa para serem vistas pelos pais! Que dramas ao longo da vida acontecem quando os filhos não foram vistos com amor incondicional na sua primeira infância! Um psicólogo infantil fala do “drama das crianças abandonadas” que explica tudo: o corte e a automutilação, o alcoolismo e as agressões, até a auto-exibição vaginal das celebridades dependentes químicos em Hollywood. Antes de tudo procura-se a vergonha, o ferimento, a dor, do que suportar a dor de não ser visto. Há pessoas que se impõem a vida inteira uma vontade incondicional de “produzir” - igual ao hamster na roda -, e que trabalham incansavelmente, até cair, só para provar algo a si mesmo.

 

O amor incondicional

Mas, olhando de perto, ninguém deseja provar algo para si mesmo. Muito mais repercutam na vida, os pais cujo olhar a criança queria cativar; os pais aos quais a criança queria mostrar algo de seu valor – “que grande! que bonito! que firme! que corajoso...meu filho/minha filha” –; os pais, muitas vezes já falecidos; enfim, os pais que não olharam para o seu filho/sua filha com amor puro, com amor incondicional. Todas essas crianças levam o estigma do amor condicional na sua testa: “Você só é bom quando você for bom”. Isso destrói a pessoa.

Ser percebido incondicionalmente, ser visto com prazer absoluto, ser olhado com amor infinito – eis o desejo mais profundo da pessoa humana. O fato de ‘poder estar’, porque sou uma criança infinitamente amada: é isso que ninguém pode carecer até seu último suspiro. Para que não martele toda hora essa pergunta ansiosa: Alguém está olhando para mim, tem um olhar bom pra mim? Ou tenho que usar de violência, de provocação para buscar o que tanto preciso?        

Sempre me lembro de uma fotografia bem especial na qual a Madre Teresa se inclina para um homem velho moribundo e o sorriso que paira entre os dois. O sorriso diz: “Que bom que você existe!” O homem velho que tem ainda poucas hora para viver – ele é a criança que deseja nada mais do que ser vista. O olhar dele fala: Favor, confirme mais uma vez que sou bem visto, que sou para sempre bem visto.   

 

Trilogia: Deus – Oração – Mudança 

Portanto, orar como resposta a um chamado tem seu fundamento dourado num orar como gratidão de ser visto por Deus; ou com outras palavras: nossas orações transformadoras do mundo baseiam-se na contemplação silenciosa das ações futuras de Deus.

“Ele olha para mim – e eu para Ele!”, assim respondeu o lavrador quando o Cura d’Ars perguntou como ele oraria?

Certamente temos que implorar o Céu para que o nosso mundo se torne outra vez bonito. Mas, antes de tudo podemos dizer:  

 

Tu, deixe se olhar

pelos bons olhos de Deus,

deixe se olhar longa e intensamente!

Deixe que o sol de Deus te penetre!

Abra-te em suas deformações!

Deus te olha.

Vê, como cresce sua dignidade.

Vê, como tu podes olhar a si mesmo.

Vê, como teu mundo se torna visivelmente bonito.

 

 

PERGUNTAS PARA COMPARTILHAR EM GRUPO:

 

1.      Quais os elementos novos, quais os conhecidos nesta reflexão?

 

2.      O que você acha da teoria do autor: responsabilidade com o mundo depende da oração?

 

3.      Como eliminar o abismo entre muita oração, devoção e religiosidade e pouca responsabilidade com o mundo?

 

4.      Porque a maioria das pessoas não ouvem o chamado de Deus que vem da grave crise climática?   

 

5.      Outras perguntas interessantes:...



[1] Essa reflexão consta no livro de MEUSER, Bernard. Beten – Eine Sehnsucht (Oração – uma saudade). Basel: Fontis, 2015, capítulo 10. – O autor nasceu em 1953, era gerente de uma editora católica; é escritor e publicitário de obras que tratam da espiritualidade e do cristianismo vivido e que se direcionam especialmente à juventude. Ele é membro da Academia Europeia de Ciências e Artes; iniciou a edição alemã do catecismo juvenil ‘YouCat’. – Tradução: Johannes Gierse. Os subtítulos foram acrescentados pelo tradutor. Fotos: Google imagem e próprias.  

[2] Em alemão, a expressão “olhar para o outro”, ou “ser visto por alguém”, implica a transmissão e o reconhecimento da dignidade do outro.

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