Dilexi te, “Eu te amei”. O amor de Cristo que se encarna no
amor aos pobres, entendido como cuidado dos doentes; luta contra a escravidão;
defesa das mulheres que sofrem exclusão e violência; direito à educação;
acompanhamento aos migrantes; esmola que “é justiça restabelecida, não um gesto
de paternalismo”; equidade, cuja falta é “a raiz de todos os males sociais”.
Leão XIV assina sua primeira exortação apostólica, Dilexi te, texto em 121
pontos que brota do Evangelho do Filho de Deus que se tornou pobre desde sua
entrada no mundo e que relança o Magistério da Igreja sobre os pobres nos
últimos cento e cinquenta anos. “Uma verdadeira mina de ensinamentos”.
Leia
o texto integral da Exortação Apostólica do Papa Leão XIV
Seguindo os passos dos seus antecessores
Com este documento assinado a 4 de outubro, festa de São
Francisco de Assis, o Pontífice agostiniano segue assim os passos dos seus
antecessores: João XXIII com o apelo aos países ricos na Mater et Magistra para
que não permaneçam indiferentes perante os países oprimidos pela fome e pela
miséria (83); Paulo VI, com a Populorum progressio e o discurso na ONU “como
advogado dos povos pobres”; João Paulo II, que consolidou doutrinariamente “a
relação preferencial da Igreja com os pobres”; Bento XIV e a Caritas in
Veritate, com sua leitura “mais marcadamente política” das crises do terceiro
milênio. Por fim, Francisco, que fez do cuidado “pelos pobres” e “com os
pobres” um dos pilares do seu pontificado.
Um trabalho iniciado por Francisco e relançado por Leão
Foi o próprio Francisco que, nos meses que antecederam sua
morte, iniciou o trabalho sobre a exortação apostólica. Assim como aconteceu
com a Lumen Fidei, de Bento XVI, recolhida em 2013 por Jorge Mario Bergoglio,
também desta vez é o sucessor que completa a obra, que representa uma
continuação da Dilexit Nos, a última encíclica do Papa argentino sobre o
Coração de Jesus. Porque é forte a “ligação” entre o amor de Deus e o amor
pelos pobres: através deles, Deus “ainda tem algo a nos dizer”, afirma o Papa
Leão. E ele retoma o tema da “opção preferencial” pelos pobres, expressão
nascida na América Latina (16) não para indicar “um exclusivismo ou uma
discriminação em relação a outros grupos”, mas “a ação de Deus” que se move por
compaixão pela fraqueza da humanidade.
No rosto ferido dos pobres encontramos impresso o sofrimento
dos inocentes e, portanto, o próprio sofrimento de Cristo (9)
Os “rostos” da pobreza
São numerosos os pontos para reflexão, numerosas as
motivações para a ação na exortação de Robert Francis Prevost, na qual são
analisados os “rostos” da pobreza. A pobreza daqueles que “não têm meios de
subsistência material”, de “quem é marginalizado socialmente e não possui
instrumentos para dar voz à sua dignidade e suas capacidades”; a pobreza
“moral”, “espiritual”, “cultural”; a pobreza “de quem não tem direitos, nem
lugar, nem liberdade” (9).
Novas formas de pobreza e falta de equidade
Diante desse cenário, o Papa considera “insuficiente” o
compromisso de eliminar as causas estruturais da pobreza em sociedades marcadas
por “numerosas desigualdades”, pelo surgimento de novas formas de pobreza “mais
sutis e perigosas” (10) e por regras econômicas que aumentaram a riqueza, “mas
sem equidade”.
A falta de equidade é a raiz dos males sociais (94)
A ditadura de uma economia que mata
“Quando dizem que o mundo moderno reduziu a pobreza, fazem-no
medindo-a com critérios doutros tempos não comparáveis à realidade atual”,
afirma Leão XIV (13). Deste ponto de vista, ele saúda “com satisfação” o fato
de que “as Nações Unidas tenham colocado a erradicação da pobreza como um dos
objetivos do Milênio”. No entanto, o caminho é longo, especialmente numa época
em que continua a vigorar a “ditadura de uma economia que mata”, em que os
ganhos de poucos “crescem exponencialmente”, enquanto os da maioria estão “cada
vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz” e em que se difundem
“ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação
financeira” (92).
Cultura do descarte, liberdade de mercado, pastoral das
elites
Tudo isso é sinal de que ainda persiste – “por vezes bem
disfarçada” – uma cultura do descarte que “tolera com indiferença que milhões
de pessoas morram de fome ou sobrevivam em condições indignas do ser humano”
(11). O Papa condena então os “critérios pseudocientíficos” segundo os quais
será “a liberdade do mercado” a levar à “solução” do problema da pobreza, bem
como a “pastoral das chamadas elites”, segundo a qual “em vez de perder tempo
com os pobres, é melhor cuidar dos ricos, dos poderosos e dos profissionais”
(114).
Realmente, os direitos humanos não são iguais para todos (94)
Mudar a mentalidade
O que o Papa invoca é, portanto, uma “mudança de
mentalidade”, libertando-se antes de tudo da “ilusão de uma felicidade que
deriva de uma vida confortável”. Isso leva muitas pessoas a uma visão da
existência centrada na riqueza e no sucesso “a todo custo”, mesmo em detrimento
dos outros e por meio de “sistemas político-econômicos injustos” (11).
A dignidade de cada pessoa humana deve ser respeitada já
agora, não só amanhã (92)
Em cada migrante rejeitado está Cristo batendo à porta
Leão XIV dedica um amplo espaço ao tema das migrações. Para
ilustrar suas palavras, ele usa a imagem do pequeno Alan Kurdi, o menino sírio
de 3 anos que se tornou, em 2015, símbolo da crise europeia dos migrantes com a
foto de seu corpinho sem vida em uma praia. “Infelizmente, à parte de alguma
momentânea comoção, acontecimentos semelhantes estão a tornar-se cada vez mais
irrelevantes, como notícias secundárias” (11), constata o Pontífice.
Ao mesmo tempo, ele lembra a obra secular da Igreja em favor
daqueles que são forçados a abandonar suas terras, expressa em centros de
acolhimento, missões de fronteira, esforços da Caritas Internacional e outras
instituições (75).
A Igreja, como mãe, caminha com os que caminham. Onde o mundo
vê ameaça, ela vê filhos; onde se erguem muros, ela constrói pontes. Pois sabe
que o Evangelho só é crível quando se traduz em gestos de proximidade e de
acolhimento; e que em cada migrante rejeitado, é o próprio Cristo que bate às
portas da comunidade (75)
Ainda sobre o tema das migrações, Robert Prevost faz seus os
famosos “quatro verbos” do Papa Francisco: “Acolher, proteger, promover e
integrar”. E do Papa Francisco ele também toma emprestada a definição dos
pobres não apenas como objeto de nossa compaixão, mas como “mestres do
Evangelho”.
Servir aos pobres não é um gesto a ser feito “de cima para
baixo”, mas um encontro entre iguais… A Igreja, portanto, quando se curva para
cuidar dos pobres, assume sua postura mais elevada (79)
Mulheres vítimas de violência e exclusão
O Sucessor de Pedro olha então para a atualidade marcada por
milhares de pessoas que morrem todos os dias “por causas relacionadas com a
desnutrição” (12). “Duplamente pobres”, acrescenta, são “as mulheres que
padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente
têm menos possibilidades de defender os seus direitos” (12).
“Os pobres não existem por acaso…”
O Papa Leão XIV traça uma reflexão profunda sobre as causas
da pobreza: “Os pobres não existem por acaso ou por um cego e amargo destino.
Muito menos a pobreza é uma escolha, para a maioria deles. No entanto, ainda há
quem ouse afirmá-lo, demonstrando cegueira e crueldade”, sublinha (14).
“Obviamente, entre os pobres há também aqueles que não querem trabalhar”, mas
há também muitos homens e mulheres que, por exemplo, recolhem papelão de manhã
à noite apenas para “sobreviver” e nunca para “melhorar” a vida. Em suma, lê-se
em um dos pontos centrais da Dilexi te, não se pode dizer “que a maioria dos
pobres estão nessa situação porque não obtiveram méritos, de acordo com a falsa
visão da meritocracia, segundo a qual parece que só têm méritos aqueles que
tiveram sucesso na vida” (14).
Ideologias e orientações políticas
Em muitas ocasiões, observa o Papa Leão, são os próprios
cristãos que se deixam “contagiar por atitudes marcadas por ideologias mundanas
ou por orientações políticas e econômicas que levam a injustas generalizações e
conclusões enganosas” (15).
Há quem continue a dizer: “O nosso dever é rezar e ensinar a
verdadeira doutrina”. Mas, desvinculando este aspecto religioso da promoção
integral, acrescentam que só o Governo deveria cuidar deles, ou que seria
melhor deixá-los na miséria, ensinando-lhes antes a trabalhar (114)
A esmola frequentemente desprezada
Sintoma dessa mentalidade é o fato de que o exercício da
caridade às vezes é “desprezado ou ridicularizado, como se fosse uma fixação
somente de alguns e não o núcleo incandescente da missão eclesial” (15). O Papa
detém-se longamente na esmola, raramente praticada e frequentemente desprezada
(115).
Como cristãos, não renunciemos à esmola. Um gesto que pode
ser feito de várias maneiras, e podemos tentar fazer da forma mais eficaz, mas
que deve ser feito. E será sempre melhor fazer alguma coisa do que não fazer
nada. Em todo o caso, tocar-nos-á o coração. Não será a solução para a pobreza
no mundo, que deve ser procurada com inteligência, tenacidade e compromisso
social. Mas precisamos praticar a esmola para tocar a carne sofredora dos
pobres (119)
Indiferença por parte dos cristãos
Na mesma linha, o Papa destaca “a falta ou mesmo a ausência
de compromisso” com a defesa e a promoção dos mais desfavorecidos em alguns
grupos cristãos (112). Se uma comunidade da Igreja não coopera para a inclusão
de todos, adverte ele, “correrá também o risco da sua dissolução, mesmo que
fale de temas sociais ou critique os Governos. Facilmente acabará submersa pelo
mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas, reuniões infecundas
ou discursos vazios” (113).
Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel
entre a nossa fé e os pobres (36)
O testemunho dos santos, beatos e ordens religiosas
Para contrabalançar essa atitude de indiferença, há um mundo
de santos, beatos e missionários que, ao longo dos séculos, encarnaram a imagem
de “uma Igreja pobre e para os pobres” (35). De Francisco de Assis e seu gesto
de abraçar um leproso (7) a Madre Teresa, ícone universal da caridade dedicada
aos moribundos da Índia “com uma ternura que era oração” (77). E ainda São
Lourenço, São Justino, Santo Ambrósio, São João Crisóstomo, seu Santo
Agostinho, que afirmava:
“Aquele que diz amar a Deus e não se compadece dos
necessitados, mente” (45).
Leão ainda lembra o trabalho dos Camilianos pelos doentes
(49), das congregações femininas em hospitais e casas de repouso (51). Ele
lembra o acolhimento nos mosteiros beneditinos a viúvas, crianças abandonadas,
peregrinos e mendigos (55). E lembra também os franciscanos, dominicanos,
carmelitas e agostinianos que iniciaram “uma revolução evangélica” através de
um “estilo de vida simples e pobre” (63), juntamente com os trinitários e
mercedários que, lutando pela libertação dos prisioneiros, expressaram o amor
de “um Deus que liberta não só da escravidão espiritual, mas também da opressão
concreta” (60).
A tradição destas Ordens não cessou. Pelo contrário, inspirou
novas formas de ação diante das escravidões modernas: o tráfico de pessoas, o
trabalho forçado, a exploração sexual, as diversas formas de dependência. A
caridade cristã, quando encarnada, torna-se libertadora (61)
O direito à educação
O Pontífice recorda também o exemplo de São José de Calasanz,
que fundou a primeira escola popular gratuita da Europa (69), para salientar a
importância da educação dos pobres: “Não é um favor, mas um dever”.
Os pequenos têm direito à sabedoria, como exigência básica do
reconhecimento da dignidade humana (72)
A luta dos movimentos populares
Na exortação, o Papa também menciona a luta contra os
“efeitos destrutivos do império do dinheiro” por parte dos movimentos
populares, conduzidos por líderes “colocados muitas vezes sob suspeita e até
perseguidos” (80). Eles, escreve, “convidam a superar aquela ideia das
políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os
pobres, nunca dos pobres” (81).
Uma voz que desperte e denuncie
Nas últimas páginas do documento, Leão XIV apela a todo o
Povo de Deus para “fazer ouvir, ainda que de maneiras diferentes, uma voz que
desperte, denuncie e se exponha mesmo correndo o risco de parecer estúpidos”.
As estruturas de injustiça devem ser reconhecidas e
destruídas com a força do bem, através da mudança de mentalidades e também, com
a ajuda da ciência e da técnica, através do desenvolvimento de políticas
eficazes na transformação da sociedade (97)
Os pobres, não um problema social, mas o centro da Igreja
É necessário que “todos nos deixemos evangelizar pelos
pobres”, exorta o Papa (102). “O cristão não pode considerar os pobres apenas
como um problema social: eles são uma questão familiar. Pertencem aos nossos”.
Portanto, “a relação com eles não pode ser reduzida a uma atividade ou
departamento da Igreja” (104).
Os pobres ocupam um lugar central na Igreja (111)
Fonte:
Vatican
News
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COMENTÁRIOS
Olhando somente para os banners, o
documento está dentro do esperado a respeito dos para um Pontífice como Leão
XIV:
a) Assume uma linha de continuidade
com Francisco;
b) Vai às fontes bíblicas para
justificar o compromisso com a promoção humana e o cuidado com os pobres
c) Busca na Tradição da Igreja
exemplos históricos de desapego material e compromisso com os últimos da
sociedade;
d) Procurar não tratar a
solidariedade e ao amor aos pobres como algo excepcional ou de tempos mais recentes, mas procura
demonstrar que isso foi algo perene na história da Igreja;
d) Procura estabelecer uma linha de
continuidade entre os seus últimos três antecessores, buscando uma certa
unidade no magistério da Igreja;
e) Como bom agostiniano, reforça
sempre a dimensão transcendental enquanto fundamental para as medicações
históricas (estabelecer com Deus o Reino de Justiça);
f) Faz uso negativo do termo
ideologia, como degeneração ou desvio da fé cristã. Aqui há uma ambiguidade,
deixando a interpretação ao gosto do freguês;
g) Enfatiza o caráter assistencial da
ação junto aos pobres. Em detrimento das mudanças estruturais? (é preciso ler o
texto todo para responder essa questão);
h) Faz importante menção a expressão
Igreja dos Pobres (Cardeal Lercaro no Vaticano II e Papa Francisco);
i) A opção pelos pobres é
consequência do amor de Cristo (o pobre enquanto categoria teológica - cerne da
reflexão da Teologia da Libertação? Os teólogos devem ter uma palavra a dar
sobre isso)
j) A lógica de uma "Igreja que
saiba apenas amar" é resgatar o amor como elemento fundamental da fé em
tempos de ódio e fundamentalismo ou uma visão ingênua, onde as mediações sócio-históricas
seriam incapazes de resolver a questão da pobreza?
Concluindo, embora o texto seja uma
continuidade do último documento de Francisco, esta exortação traz algumas
marcas significativas de Leão, inclusive um apelo implícito à unidade da Igreja
e as ambivalências deste começo de pontificado.
Se havia a expectativa de ver nesse
texto a contundência de Francisco, talvez o texto possa causar alguma decepção.
Mas se considerarmos as tensões que
envolveram o Conclave e a missão assumida por Prevost enquanto Leão XIV, o
documento está dentro do esperado.
Não é um estilo de vanguarda, que
carrega a marca da profecia e de se lançar às fronteiras das questões delicadas
para o catolicismo atual, por um lado. Mas não retrocede em nada os elementos
fundamentais de Francisco, por outro.
(reitero que são apenas reações
iniciais, baseadas nos hipertextos, não no documento em si)
Pe. Manoel José de Godoy
É Mestre em práxis cristã, Professor e Diretor Executivo do ISTA –
Instituto Santo Tomás de Aquino, em Belo Horizonte. Atuou durante 10 anos como
assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Hoje, além de professor
também no Instituto Teológico Pastoral da América Latina – Itepal, com sede em
Bogotá, é consultor de diversas Dioceses Brasileiras, e inúmeras Congregações
Religiosas. Hoje atuante na Paróquia de São Tarcísio Endereço: Rua Alexandre
Mathias Alves, 146 - Nova Cintra - BH - MG Telefone: (31)3374-8971 Fax:
(31)3312-1506
E-mail: secretaria.paroquiasaotarcisio@gmail.com
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